Um artigo do professor Leandro Skald
PROPAGANDA ENGANOSA
Logo depois que digo que sou músico, é provavelmente a frase que mais escuto. E hoje irei discutir tudo que há por trás dessa frase aparentemente inocente que músicos DETESTAM escutar.
Num mundo cada vez mais tecnicista, de aparências, resultados rápidos e pessoas ansiosas por resultados; muitos valores e percepções relacionadas à construção e acumulação de qualquer coisa, ( patrimônio, conhecimento, massa muscular, habilidades práticas) graças ao marketing agressivo ganharam um tom de “você pode conseguir isso rapidamente, basta seguir o MEU método, clique no link abaixo, escreva seu email e veja o porque você está ficando para trás dos seus amigos”. E o que é o mais triste, as pessoas caem nessa. E isso é um perigo.
Basta você se interessar minimamente por algo na internet, que os algoritmos vão automaticamente agir de forma a querer lhe vender algo. Nada contra o marketing ou o algoritmo, muito pelo contrário, provavelmente você não estaria lendo esse texto se não fosse graças a eles. O ponto é que o marketing agressivo, diferentemente do marketing de divulgação, está paulatinamente tendendo a mudar padrões de noção da realidade muito claros para o senso comum.
EXPECTATIVA/REALIDADE
Acha que é realmente possível aprender inglês em seis meses? Perder 10 quilos em uma semana?(sem perder a saúde), Acumular mais de um milhão de reais à partir de R$1500? Se a resposta for não para todas já temos um bom começo para relacionar o porquê de que onde entra esse “talento” musical que aparentemente somente algumas pessoas são agraciadas com ele.
Música é uma das poucas disciplinas que são desafiadoras ao nosso corpo por completo. Pois estão envolvidos o raciocínio lógico-matemático, o raciocínio de linguagem, de percepção auditiva, memória, expressividade, de coordenação motora e sentimentalidade. É realmente difícil encontrar uma pessoa tão agraciada naturalmente com esses dons tão preciosos. A boa notícia é que todas estas habilidades são habilidades treináveis, e todas irão contribuir para sua boa performance.
O TAL DO DOM
Vamos à polêmica!
Dado ao fato da música ser uma arte complexa com diversos tipos de habilidades treináveis, primeiro temos de definir qual ou quais habilidades podem ser consideradas inatas, se é a musicalidade ou as habilidades sensitivo-motoras. E veja bem:
Se atentem a dois fatos.
I – O dicionário define dom como “Qualidade inata, natural; aptidão, talento, dádiva” .
II – Nós, vivemos em um mundo ocidental. Todos os paradigmas na qual a música que escutamos rege hoje , são evoluções de construções que remontam o princípio do século IX europeu, onde começa propriamente dita, a História da Música (em alguns livros, ainda há mais polêmicas e divergências sobre isso, mas algo entre o séculos VII e X).
Me questiono bastante para tentar entender como alguém pode ter de forma inata e natural, uma habilidade totalmente moldada pela cultura ao longo dos séculos. Saber tocar uma música ocidental por um instrumento ocidental é algo impossível para alguém que não foi exposto a ela de forma intensiva e duradoura. Pois senão, todos esses “pequenos gênios da música” também teriam a mesma facilidade para expressar em linguagens não ocidentais que nunca escutaram antes, como a música tradicional Indiana, por exemplo. O que não acontece. Pessoas “engessadas” por esse molde de fazer música do ocidente têm dificuldades iguais a pessoas com “musicalidade privilegiada”.Na verdade, isso foi um eufemismo para dizer “todos têm dificuldades”.
Ter uma musicalidade privilegiada significa que seu corpo sabe reproduzir muito bem, cópias e variações de tudo o que você já escutou na sua vida, com uma pitadinha mínima de originalidade.
Quem não esteve exposto aos elementos musicais, não conseguirá reproduzí-los.
“AH MAS O FULANO ENTROU NA AULA DE MÚSICA JUNTO COMIGO E JÁ SAIU TOCANDO RÁPIDO E MIMIMI…”
Ah! Aí já estamos em outra seara. A seara das habilidades manuais. Afinal, é sempre interessante estar com o dedo certo na corda certa, no tempo certo, não é mesmo? Bem…
Embora muita dessas habilidades práticas tenham e muito a ver com o que o indivíduo já foi exposto anteriormente; SIM! existem pessoas mais afinadas que outras, com melhor coordenação que outras, com maior facilidade de leitura que outras, com uma sensibilidade auditiva melhor que outras. Porém algumas ressalvas válidas e interessantes.
I – É muito difícil encontrar uma pessoa que tenha TODAS essas facilidades musicais de uma vez, algo como ter facilidade em Português e Matemática e Educação Física ao mesmo tempo.
II – Todas essas habilidades são requeridas no aprendizado da música de forma progressiva. Não é porque certa pessoa teve facilidade no exercício de nível 1 quer dizer que terá no nível 2.
III – Por outro lado, todas essas habilidades são treináveis. Não é porque você teve dificuldade em um exercício de solfejo que você ganha uma marca eterna de “não sirvo pra isso” para o resto da sua vida.
IV – (e mais importante, e o ponto principal de todo o post) Facilidades iniciais só lhe leva além no início. O que quer dizer que, para pessoas não profissionais da música, ter essa facilidade inicial no começo, o famoso “dom” só lhe leva para no máximo o degrau 5 de habilidades, (numa escadaria de 1937563829 degraus).
1% INSPIRAÇÃO, 99% TRANSPIRAÇÃO
É muito cômodo dizer “não tenho o dom”. Qual seria esse dom? De musicalidade ou de Habilidades Práticas? No caso de habilidades práticas, seria em todos? Sério? Você tinha dificuldade em TODAS as disciplinas escolares nos seus tempos de estudante? ou havia uma área que você lidava melhor? Será que apenas uma de suas dificuldades musicais está ofuscando todo o restante? Tem dificuldade, mas o que você pretende fazer com isso? Estagnar?
Músicos profissionais estudam de 2 a 6 horas diárias para somente manter o que já sabem. Dizer que alguém tem um dom inato de uma disciplina totalmente criada culturalmente ao longo dos séculos ou dizer que alguém nasceu com uma habilidade mágica de juntar milhões de neurônios para desempenhar uma habilidade dificílima, impossível para qualquer outro ser humano é não somente diminuir todo o esforço construído ao longo de anos para adquirir (e manter) técnicas complexas; mas dizer a si mesmo e a outros que tem a música como uma paixão, que ela é só para alguns.
As habilidades musicais, sejam elas quais for, são treináveis. Talento é ter consciência de suas capacidades, disciplina para manter regularidade no desenvolvimento e humildade para reconhecer todo o restante que ainda está por vir.
Até hoje, nunca coincidiu de eu encontrar um aluno tão agraciado com o combo desse talento acima citado e facilidade inicial na música. Os disciplinados foram os que foram mais longe.
Autor: Leandro Skald